10 de nov. de 2008

Pergunte ao Bispo...

Acho que a política, antigamente, era mais verdadeira. Os partidos não tinham os nomes cheios de letras, como os de agora. Se tinham, ninguém se importava. O que valia mesmo eram os nomes que o povo lhes dava. Em Boa Esperança, onde nasci, os partidos eram dois: os ratos e os queijos. Em Lavras, terra da minha mãe, eram os gaviões e as rolinhas.

Não era preciso dizer mais nada. Compreendia-se de imediato a natureza do jogo político. Cada partido queria destruir o outro. Rato quer comer queijo. Queijo quer ser isca de ratoeira. Gavião quer comer rolinha. Rolinha quer é que gavião caia e quebre o pescoço. Era uma briga-festa marcada por foguetes, provocações, passeatas.

O que fazia com que uma pessoa fosse de um partido e não do outro? Não era ideologia. Ideologia é o conjunto de idéias que dizem o que o partido vai fazer, se ganhar o poder. Mas ninguém pensava nisso. Ninguém brigava por idéias. A graça estava na guerra, muito embora não se pensasse no “para que” da guerra. Era igualzinho torcida de futebol.

Sempre me pergunto: o que faz com que uma pessoa seja torcedor de um time e não de outro? Será que essa pessoa, antes de pôr suas emoções num time, faz um estudo de todos os times, para analisar os seus estilos, a classe dos seus jogadores, a honestidade dos seus dirigentes – para só então tomar a sua decisão? Não. Não há razões objetivas para se torcer por um time.
Então, o que faz com que uma pessoa fique tão perdidamente apaixonada por um time? O que a leva a essa paixão? Sei lá... Sei que não é por causa dos jogadores porque os jogadores são mercenários, não são torcedores do time em que jogam. Jogam porque são pagos e se outro time pagar melhor ele vai mudar de time. Também não é por causa dos cartolas, freqüentemente envolvidos em falcatruas. O tipo físico dos cartolas, inclusive, nada tem a ver com o tipo físico dos jogadores. A torcida se constituiu em torno de um nome, o nome do time. Torce-se por um nome e por uma camisa. E por causa desse nome e dessa camisa cometem-se os assassinatos mais estúpidos. Um torcedor vestido com a camisa de um time adversário é um inimigo que merece apanhar até morrer. Assassina-se por uma camisa...

Assim era também a política. Era? Era. É. Só que agora, ao invés de nomes de bichos como ratos, gambás, tatus, macacos, porcos-espinho, cobras, os nomes se encheram de letras cujo sentido poucas pessoas sabem. Na verdade cada letra vale por uma idéia, mas a idéia, com o passar do tempo, foi mumificada e ninguém pensa mais nela.

O que distingue os partidos? Quais são os seus ideários? É difícil deduzir, por aquilo que os políticos falam. Todos dizem a mesma coisa. Todos prometem mais empregos, mais crescimento econômico, mais segurança, mais educação. Se, vez por outra, celebram-se alianças, não é por convergências ideológicas mas por conveniências eleitorais. Cada eleição é um grande “Campeonato Brasileiro” em que cada time quer ganhar a taça. Quem ganha uma taça se assenta no poder, até que venha o novo campeonato.

O que leva uma pessoa a se ligar a um partido? Há aqueles que dizem que não lhes interessa o partido mas sim a pessoa. Isso equivale a dizer que não torce por um time mas por um jogador...
O que é meio esquisito porque o jogador só pode fazer gol se estiver jogando num time. Os políticos trocam de partido como os jogadores trocam de time. Mas, diferentes dos jogadores que não têm como furtar-se ao teste anti-dopping, os políticos saem de campo e demitem-se quando têm de submeter-se ao teste anti-corrupção.

Mas o fato é que há, na política, políticos que não são políticos; não torcem pelo time em que jogam. Se o juiz apita impedimento do atacante adversário que fez o gol, ele vai ao juiz e diz que o atacante não estava impedido. Eles não agem em função dos interesses dos partidos mas em obediência àquilo que consideram ser a verdade e o bem comum. Parecem-se mais com profetas solitários, vozes que clamam no deserto. Sua vida política é curta. Por isso eu os admiro.

O referendo sobre o desarmamento está me impressionando por duas razões. A primeira delas: nos limites da minha memória é a primeira vez que vejo uma votação acontecer em torno de uma idéia e não em torno de símbolos partidários. Não há candidatos. Não há partidos. A segunda razão: impressiona-me a paixão que a questão das armas tem provocado no povo. É o grande assunto das conversas, porque tem a ver com o cotidiano das pessoas. Processadas as divergências, todos são contra a violência. O que se busca é a melhor solução para se atingir um objetivo comum, que é a tranqüilidade dos cidadãos. É preciso trazer a paz de volta às nossas cidades. É preciso expulsar o medo.

Alguns argumentam que são contra a proibição de venda de armas porque isso seria atentar contra a liberdade do cidadão. Besteira. A sociedade se constrói sobre proibições. É proibido pisar na grama, é proibido guiar pelo acostamento, é proibido dar cheques sem fundos, é proibido roubar, é proibido matar. Uma sociedade sem proibições seria um caos. A proibição é o pré-requisito para que se configure o crime. Numa sociedade sem proibições não há crimes. Outros argumentam que é preciso que os cidadãos tenham armas para se defenderem dos bandidos. Besteira também. Os bandidos são mais rápidos, atiram primeiro. Outros pensam que a proibição de venda de armas produzirá um desarmamento geral, menos dos criminosos, é claro. Mas a proibição da bebida, nos Estados Unidos, não produziu uma sociedade abstinente e sóbria.
A proibição só serviu para aumentar o crime. A proibição das drogas não eliminou a comercialização e o consumo de drogas. Só serviu para trazer à existência o tráfico ilegal das drogas e o banditismo.

Todo mundo critica o povo por sua apatia diante dos problemas do país. Mas a apatia não surge do nada. A apatia vem junto com o sentimento de impotência. A corrupção é tão grande que nos sentimos impotentes. E apáticos. Ela deixa de nos provocar indignação. Face aos horrores da nossa vida política somos tomados pela convicção de nada há a ser feito. Mas agora, diante da questão do desarmamento, o povo está sentindo que o seu voto faz diferença. Por isso ele pensa e discute. Talvez que o povo venha a despertar de sua apatia quando, ao invés de ter de votar nos jogadores que irão constituir os times partidários, ele tiver de decidir sobre questões concretas do seu cotidiano. Se duvidam, perguntem ao bispo que jejuou pelo rio S. Francisco...
(Correio Popular, 23/10/2005 - Rubem alves)

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