10 de nov. de 2008

Minha educação Sexual

Menino inteligente e de olhos curiosos, decifrei desde muito cedo os mistérios do sexo, a diferença entre os homens e as mulheres. E isso por conta própria, sem que ninguém me contasse. Percebi que homens eram aqueles que usavam calças. Mulheres eram aquelas que usavam saias. Essa conclusão óbvia me bastava. O problema que me atormentava era outro: como saber o sexo dos bichos que nem usam calças e nem usam saias? A única exceção eram os galos e as galinhas, nos quais a diferença sexual está na cara dos galos: os galos têm uma crista vermelha na cabeça e cantam. Se não tem crista vermelha e nem canta, é galinha.

E por falar em crista de galo, lembro-me de que Leonardo da Vinci, no seu livro de culinária, ensina uma receita de cristas de galo assadas, prato muito apreciado na época. Há, entretanto, uma pendência que me deixa angustiado: as cristas eram cortadas dos galos enquanto vivos? Ficavam eles, depois da cruel castração de sua masculinidade, a perambular, humilhados, por entre as galinhas que certamente se riam deles?

Mas os outros bichos que nem usavam calças e saias e nem tinham crista na cabeça, gatos, cachorros, cavalos, bois e vacas, me causavam perplexidade. Estávamos meu pai, minha mãe e eu conversando, numa tarde, quando achei apropriado esclarecer essa questão. Eu deveria ter 4 anos de idade. “Pai, como é que a gente sabe quando é boi e quando é vaca?” Minha mãe convulsionou e soltou um grito fino. “Diano, não! Diano, não!” Foi o que ela disse. Me lembro bem. Não me lembro de outro grito igual. Meu pai deu uma risadinha sem graça e disse: “É fácil.
Os bois têm argolinha no chifre”. Se você não entendeu a explicação do meu pai, digo que eu entendi e passo a explicá-la. Os bois, touros que se tornaram obedientes pela castração, eram usados para puxar carros de bois. Quem dava as ordens era o carreiro que caminhava a pé ao lado do carro com o seu ferrão dotado de um guiso cuja música os bois entendiam muito bem, treinados que tinham sido com técnicas pavlovianas: o simples soar do guiso dizia que lá vinha ferroada. E antes que ela viesse eles obedeciam. Andando ao lado dos bois havia sempre o perigo de que um deles, provocado por alguma varejeira no focinho, meneasse a cabeça para o lado, atingindo o carreiro com um chifre. Para evitar que isso acontecesse aparafusavam-se argolinhas na ponta dos chifres dos bois e amarravam-se a argolinha do chifre direito do boi da esquerda à argolinha do chifre esquerdo do boi da direita por meio de uma tira de couro. Assim, as cabeças dos bois ficavam impedidas de golpes bruscos que pudessem ferir o carreiro.
Aceitei a explicação do meu pai sem acreditar muito porque o grito de minha mãe me informou que eu estava andando em terreno proibido. Agora, muitos anos transcorrido após o acontecido, meditando psicanaliticamente sobre esse trauma infantil, veio-me a idéia de que o grito de minha mãe era uma reação ante à possibilidade eminente de que o meu pai a despisse na minha frente. Porque se ele dissesse a verdade e me revelasse o segredo da diferença entre bois e vacas eu poderia, por analogia, chegar a conclusões sobre a diferença entre homens e mulheres, e isso era como expô-la nua, aos meus olhos.

O próximo passo na minha educação sexual teve a ver com galos e galinhas. Intrigava-me o costume estranho que tinham os galos de correr atrás das galinhas que fugiam cacarejando esbaforidas até alcançá-las. A seguir subiam nas suas costas num equilíbrio instável, agarrando-se às suas cristas para não cair e baixavam o rabo, ritual que não durava mais que 5 segundos.
Dirigi-me novamente ao meu pai. Sabia que seria inútil fazer pergunta tão complicada à minha mãe. Perguntei-lhe das razões por que os galos faziam aquilo. Ele me respondeu que se tratava de uma ação punitiva do galo por alguma coisa errada que a galinha tivesse feito. Fiquei indignado. Revelou-se, então, uma vocação que haveria de me acompanhar pelo resto da minha vida: desde menino fui feminista. Estou sempre pronto a defender os fracos, tal qual D. Quixote de la Mancha. Ele, lançando-se de lança em riste contra os moinhos de vento. Eu, atacando os galos a pedradas e vassouradas para que eles soubessem que, enquanto eu estivesse por perto, não permitira aquele seu ato machista e covarde. O fato é que, a partir daquele dia, não dei descanso aos galos.

A lição seguinte ocorreu alguns anos depois. Caminhava com a minha mãe por uma das ruas centrais da cidade de Varginha de um jeito que eu detestava: ela me segurava firme pelo pulso, sem me dar chance de me libertar. Como as mãos dizem coisas diferentes! A mão grande que segura a mão pequena. Como se dissesse: “Estou aqui. Pode confiar em mim. Você pode abrir a sua mão quando quiser”. É uma mão que segura com ternura. Já a mão grande que segura a criança pelo pulso está dizendo: “Você não tem escolha. Pode abrir a sua mão à vontade. Você continuará preso pela minha mão...”

De repente eu vi uma coisa monstruosa que nunca tinha visto, uma aberração, doença terrível, pobre daquela mulher, com uma barriga imensa da qual se envergonhava, tanto assim que tentava escondê-la debaixo de uma blusa que mais se parecia com uma saia de tão grande. “-Mãe, olha só o barrigão daquela mulher...” Não cheguei a terminar a frase. Minha mãe apertou o meu pulso com raiva e sem dizer uma única palavra deu-me um safanão. Não entendi nada. Mas aprendi que não deveria jamais falar sobre mulheres barrigudas. Nunca mais falei.
Estou escrevendo minhas memórias que publicarei como livro. Essa crônica é um dos fragmentos.

(Correio Popular, 21 de Agosto de 2005. - Rubem Alves)

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