10 de nov. de 2008

Estórias de Princesinhas

Minha mãe me contava a estória de uma princesinha que fora enfeitiçada por uma bruxa malvada resultando que ela, ao falar, de sua boca saltavam répteis moles, frios e viscosos. Ela só sabia dizer “cobras e lagartos” e quem a ouvia tinha de se conformar em “engolir sapos”. Como ninguém mais conta essa estória eu resolvi reescrevê-la do meu modo.

Era uma vez uma linda princesinha. Linda mesmo! Quem a via não podia deixar de exclamar: “linda!” “Linda!” foi a primeira palavra que seu pai falou ao vê-la acabada de nascer. “Linda!” foi o que falaram sua mãe, seus tios, seus avós e todos os que a viram. Nada mais natural, portanto, que a batizassem com o nome de “Linda”. Assim, no batizado, ante o sorriso encantado de sua Fada Madrinha, o padre falou “Linda”. ( Como é bem sabido toda princesa tem uma Fada Madrinha. )

Linda”foi a palavra que a princesinha mais ouviu durante sua infância e adolescência. Tantas vezes ela a ouviu que acabou por acreditar. Esse é um costume curioso dos seres humanos: acreditam em tudo o que é sempre repetido por todos, ainda que seja uma asnice.

Linda gostou tanto de ser assim admirada por todos que acabou por fazer-se objeto de admiração para si mesma. Ela se declarou então sua “fã número 1”, igualzinho a Narciso.
Colocava-se diante do espelho mágico que herdara de sua falecida tia ( que Deus a tenha! ), a madrasta da Branca de Neve, e dizia a si mesma: “Sou sua fã número um”. Passava o dia inteiro fazendo ao espelho a mesma pergunta que sua tia fazia. “Espelho, espelho meu, haverá no mundo princesa mais linda do que eu?” O espelho nem respondia. Ficava repetindo, abobalhado: “Linda! Linda!” Ah! Como ela amava o seu espelho! Se pudesse se casaria com ele.

Sua Fada Madrinha tinha muitos poderes. Mas havia um que era exclusivo dela: ela ouvia os sons que existem dentro das cabeças das pessoas. Esses sons nós não os ouvimos porque não temos os poderes da Fada. Mas que eles existem, existem! São os sons mais variados: violino, bateria, tambor, corneta, uivos de velório, falatório, cantos de passarinho e não raro um chorinho. Os sons que existem dentro das nossas cabeças são os sons da nossa alma. Pois a Fada Madrinha, ao se aproximar de sua afilhada, ouvia sons que a deixaram muito preocupada. Há um ditado que diz: “Cabeça vazia é oficina do Diabo”. Errado. O certo é: “Cabeça vazia é charco, criadouro de saparia”. E era precisamente isso que a Fada Madrinha ouvia: cantoria de saparia, coaxando numa lagoa mal cheirosa. Lamentou-se então a Fada: “É feia a alma da minha afilhada...”

A Fada Madrinha conhecia muitos feitiços: transformava abóboras em carruagens, feras em belas, anões em gigantes, reis em sapos, fios de cabelo em correntes. Mas não conhecia feitiço que fosse capaz de transformar canto de sapo em canto de sabiá. Esse milagre somente os livros podem fazer, porque os livros põem música na alma. Assim, temendo que sua afilhada viesse a se transformar numa sapa, começou a dar-lhe livros de presente, como antídotos anti-coaxar de sapo. Livros de estórias, livros de poesia, livros de aventuras, livros de amor, livros de ciência, livros de culinária, livros de viagens. Mas Linda se achava tão linda que não se interessava pelos livros. Os livros não falavam sobre ela, que era a coisa mais linda do mundo.

No mesmo dia em que Linda nasceu, nasceu uma outra princesinha. Só que ela não era linda. Era até meio feinha. Ao vê-la ninguém dizia “linda!” Para compensá-la pelo fato de ser feinha, seus pais lhe escolheram um nome maravilhoso, tirado das Mil e uma noites: Xerazade. Xerazade era aquela jovem que, durante mil e uma noites contou estórias para o sultão, e o sultão ficou perdidamente apaixonado por ela. Xerazade, a do sultão, não era bonita. Mas lia todos os livros que lhe caiam nas mãos. A nossa Xerazade, que não se interessava por espelhos, fez igual à Xerazade do sultão. Desandou a ler que não parava mais... Quanto mais lia mais a sua alma se enchia de coisas fascinantes. Leu estórias infantis, poemas, lendas, mitos, romances, livros sagrados, aprendeu línguas para ler livros de outros países... Ah! Que delícia era conversar com a Xerazade!

Aconteceu que Linda, num dia como os outros, aproximou-se do espelho para repetir aquilo que acontecia todo dia. Mas nesse dia o que acontecia todo dia não aconteceu. Sua alma já estava com uma super-lotação de sapos. Não havia lugar para mais nem umzinho. A saparia estava espremida, doida para sair. E foi assim que, abrir a sua boca, um sapo enorme saltou de dentro dela e grudou-se esparramado, no espelho. O espelho horrorizado falou: “Princezinha, não tem papo. Linda você não é. Você se parece com a barriga branca de um sapo...” Linda saiu correndo aos prantos e foi pedir socorro à mãe. Mas foi só abrir a boca e outro sapo saltou grudando-se na cara abobalhada de sua mãe. Daí para frente foi sempre assim. Era só abrir a boca para que um sapo saltasse. A notícia se espalhou e todo mundo passou a fugir da Linda que falava sapos.
Houve mesmo o caso tragi-cômico de um beijo que ela deu num namorado. Pobre do namorado: teve de engolir um sapo...

Enquanto isso, uma coisa muito estranha começou a acontecer com Xerazade. Ela falava e de sua boca saiam lindas flores perfumadas e coloridas. Por onde ela ia, era só falar para que jardins aparecessem. Todo mundo queria estar com ela porque todo mundo gosta de jardins.

Mas o final da estória é surpreendente. Um dia Linda, no desespero, foi consultar um médico especialista em casos incomuns. Esse médico, além de médico, era um gourmet: amava comidas finas e exóticas. Foi só a Linda abrir a boca e um sapo pulou na cara do médico. Indignado ele agarrou o sapo, pronto a estalá-lo na parede. Mas sua indignação se transformou em sorriso.
“Sapo coisa nenhuma! Sapos são batráquios repulsivos. Uma rã! Uma linda gorda rã, meu prato favorito, rã frita com arroz...”

E foi assim que Linda descobriu sua vocação. Não podendo falar flores, como Xerazade, ela resolveu se dedicar ao próspero negócio de criadora de rãs. E não precisava fazer força. Bastava roncar enquanto dormia. Pela manhã seu quarto estava cheio de rãs gordas pulantes que eram imediatamente vendidas a restaurantes e hotéis elegantes. Linda ficou muito rica. Pena que não tenha conseguido um marido. Marido para ela, só se fosse um sapo, como aconteceu ao final do filme Schrek II.

Quanto a Xerazade, ela nem ficou rica e nem ficou bonita. Transformou-se numa plantadora de jardins. Bastava falar para que jardins verdejassem e florescessem. Razão por que, só de pensar nela, todos sorriam...

Publicado no Correio Popular em 11/07/2004 - (Rubem Alves)

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