10 de nov. de 2008

O Que Você Faria?

Fábulas são estórias mentirosas que se contam para dizer a verdade. Por exemplo: a fábula do lobo e do cordeiro. O lobo nunca conversou com o cordeiro, porque lobos não falam. E nem o cordeiro argumentou, porque cordeiros também não falam. Trata-se, portanto, de uma mentira.
Acontece que a fábula não se refere às relações entre lobos e cordeiros. Lobos e cordeiros são usados como metáforas da política dos homens. Sua lição é: os fortes sempre devoram os fracos a despeito de os fracos estarem com a verdade. Vou contar uma estória, parábola. Mas, antes de começar, vou pedir perdão aos oncologistas, porque vou usar a sua especialidade como metáfora de uma outra coisa. Sua especialidade vai entrar na minha estória da mesma forma como o lobo entrou na fábula. O lobo é inocente. Vocês, oncologistas, são inocentes. Assim, de início, declaro que esse caso não se refere a vocês. Uso a sua especialidade como metáfora porque fica mais fácil entender. A estória é assim:

“Eles se amavam muito, marido e mulher. Mas sobre o seu amor a morte colocou o seu dedo frio.
Ela tivera um tumor canceroso no seio esquerdo que foi removido cirurgicamente. Foi-se o tumor, ficaram as marcas. Antes ela se olhava no espelho e se alegrava que seus seios fossem tão belos. Agora, cicatrizes. O marido a abraçava carinhosamente e lhe dizia: “Agora o meu coração está mais próximo do seu...” E assim viveram por cinco anos, no medo de que a morte voltasse. E ela voltou. Anunciou-se pelas dores. O velho médico, seu amigo, em quem confiavam, havia morrido. Tiveram de procurar um outro, conhecido por sua competência técnica. Imaginaram que ele seria tão amigo e sensível quanto o velho médico. Afinal de contas, a primeira condição de um médico, anterior à sua competência técnica, é a sua compaixão. Compaixão é sentir, de alguma forma, aquilo que o outro está sentindo. Retirada a compaixão o médico não passa de um mecânico que manipula carros sem sentir nada porque carros nada sentem. Assim chegou esse casal ao dito médico cheio de medo e de esperança. Pois esse medico, ao vê-la despida, sem um seio; exclamou friamente: “ Mas a senhora já não tem um seio... Seu caso é muito mais grave do que eu imaginava... ”

Fico a me perguntar: Por que é que ele falou o que falou? Não falou para informar mulher e marido de uma coisa que não soubessem. Eles sabiam que ela não tinha um seio. Também não falou para certificar-se de algo que estava vendo mas não via bem, por ser ruim dos olhos. Como se estivesse perguntando: “A senhora já fez uma mastectomia?” Não, seus olhos viam muito bem. E qual a razão do seu frio, imediato e cruel diagnóstico: “Seu caso é muito mais grave do que eu imaginava.” Para que falou isso? Era necessário? Não. Não era necessário. Seu diagnóstico em nada contribuiu para o tratamento daquela mulher. Ou será que ele assim falou por inocência? Não imaginava o veneno que suas palavras carregavam. Não imaginava o efeito de suas palavras sobre aquela mulher despida, sem um seio, humilhada, amedrontada. Se falou por inocência digo que o dito médico só pode ser um idiota que nada conhece sobre os seres humanos.

Ah! Se fôssemos dar uma resposta a essa pergunta teríamos de entrar nos subterrâneos onde mora a crueldade, os subterrâneos do sadismo. A lei prevê punições pela imperícia médica. Haverá punições para a crueldade médica? Os médicos podem ser cruéis? Claro. Todos temos um potencial de crueldade dentro da alma, crueldade que só é retida pelo amor. Mas há pessoas em que falta o amor. Aí a crueldade faz o seu serviço.

Crueldade não é algo que somente existe nas câmaras de tortura. Ela se faz também com palavras. Há palavras cruéis que apagam a tênue chama da esperança. E é essa chama de esperança que faz o corpo lutar contra a morte. Quem mata a esperança – que nome haveríamos de lhe dar? Lembro-me do que disse Jesus, de que haveríamos de pagar por todas as palavras que fizessem mal a um dos seus pequeninos. E acrescentou: “Melhor seria que esse homem amarrasse uma pedra de moinho no seu pescoço e se atirasse no mar”. Do meu ponto de vista um médico que assim usa as palavras é um traidor do juramento do Hipócrates, no qual o médico jura que jamais faria algo que fizesse mal aos seus pacientes.

Pergunto agora a vocês, médicos amigos, professores, modelos a serem imitados, responsáveis pela formação dos novos médicos: qual é o lugar, nos currículos de medicina, onde tanta coisa complicada se ensina, para uma meditação sobre a compaixão? É na compaixão que a ética se inicia e não nos livros de ética médica. Ah! dirão os responsáveis pelos currículos – compaixão não é coisa científica. Não entra na descrição de casos clínicos. Não pode ser comunicada em congressos. Portanto, não tem dignidade acadêmica. Certo. Mas acontece que não somos automóveis a serem consertados por mecânicos competentes. Somos seres humanos. Amamos a vida, queremos viver. Sofremos de dores físicas e de dores de alma: o medo, a solidão, a impotência, a morte. O que esse médico fez não tem conserto. Uma vez feita a ferida sangra. Palavras não podem ser recolhidas. O sofrimento foi plantado. E foi crescendo...

Coisas como essa acontecem por causa da impunidade. Algo deveria ser feito para impedir que tais tipos, protegidos por seus diplomas, continuem a exercer sua crueldade de forma impune. Sugiro que se crie um “disque-denúncia” ou uma “escreva-denúncia”. Os humilhados e feridos não devem se calar. Porque, se não denunciarem, aquilo que aconteceu com eles continuará a acontecer com outros. Aqui vai a minha indignação e denúncia.

E algo deveria ser feito para que os jovens aprendessem que, ao serem médicos, eles não estão lidando só com cirurgias heróicas, aparelhos sofisticados, bioquímicas curativas: eles estão lidando com seres humanos. O corpo humano é uma entidade sagrada precisamente porque nele moram o sofrimento e a vontade de viver.

Lembro-me da doutora Vilma Cloris de Carvalho, professora de neuro-anatomia que, ao final do ano, fazia realizar dentro das dependências do Departamento de Anatomia, uma “Missa do Cadáver” – uma liturgia comovente de que participei várias vezes - para que seus alunos que, por meses, haviam estado a lidar com “peças anatômicas”, se lembrassem de que aquelas “peças” haviam sido partes de um corpo vivo que ria, chorava, brincava, fazia amor. Acho que a Vilma, amiga querida, merecia ser agraciada com o título de Professora Emérita da UNICAMP, como exemplo de competência científica e compaixão médica. Ou então, sugiro que seus colegas e ex-alunos plantem um árvore em sua homenagem. Bem na entrada do Departamento de Anatomia. Eu estarei lá no plantio...

Pergunto: se você fosse o marido, o que é que você faria com o médico da minha fábula? Pois eu faria o mesmo que você...

A ilustração dessa crônica é uma fotografia de Albert Schweitzer, filósofo, teólogo, organista, intérprete de Bach. Aos 30 anos deixou tudo para tornar-se médico e passou o resto de sua vida num lugarejo perdido no interior da África, Lambarene. Prêmio Nobel da Paz. Para ele o princípio ético supremo é a “reverência pela vida”. Os estudantes de medicina deveriam estudar a sua vida.
(Rubem Alves)

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