10 de nov. de 2008

Carta a um Amigo

Meu querido amigo: Havia tantos anos que não nos víamos! E, de repente, num estacionamento, os nossos caminhos se cruzaram. Dizem que isso se chama “coincidência” – quando encontros acontecem acidentalmente, sem ter sido preparados. De fato, foi um acidente. Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infinita possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram. E deu-se o encontro.
Dizem alguns, entre eles Jung, se não me engano, que “coincidências” não existem. Coincidências, eles dizem, só são coincidências quando vistas na face direita do tapete. Mas, se pudéssemos olhar o avesso, encontraríamos os fios do destino que fizeram aquele encontro inevitável. Os homens vêem o direito; os deuses tecem o avesso.

À coincidência segue-se sempre a surpresa: não estávamos esperando! E foi assim mesmo. Tive uma surpresa alegre ao vê-lo. Muito embora, nessa idade, os reencontros repentinos, depois de muitos anos, causem um pouquinho de susto. Quando, depois de vários anos, encontramos “aquilo” que conhecêramos como uma menina, a reação automatica é dizer: “Mas como você cresceu! Você está uma moça!” Na “nossa” idade o impulso é dizer: “Mas como você..............!” Deixei o espaço em branco de propósito, para que você o completasse. Sim, eu e você envelhecemos.

Mas o que me comoveu e convenceu de que aquela coincidência fora planejada pelos deuses foi a sua primeira frase: “Rubão, estou apavorado. A hora está chegando!” Sem explicações. Eram desnecessárias. Você sabia que eu sabia o que você estava dizendo. A morte está próxima. Chegará um dia em que teremos de nos despedir desse mundo. Isso é verdade para todos. Nunca se sabe em que esquina a morte nos aguarda. Mas, quando jovens, espantamos o pavor dizendo que ainda vai demorar muito. Na velhice esse consolo já não é possível. ( Ah! Pobres dos saberes acadêmicos que eu e você aprendemos e ensinamos! Como eles nos deixam desamparados diante do Grande Mistério!)

Tive uma grande vontade de abraçá-lo, mas fiquei com vergonha. Senti “compaixão”. “Compaixão” quer dizer “sentir com”. Eu senti o que você sentia. Já estive no seu lugar. Desde a minha infância fui aterrorizado pela morte. Tinha medo de dormir, pois temia que ela, valendo-se da minha distração, me ferisse. Mas durante o dia, em meio aos brinquedos, com meus amigos, eu me esquecia dela. Mas ela voltava com o crepúsculo. Também aos domingos, quando eu ia à igreja e lá o pastor ensinava que aqueles que não estão bem com Deus ( o Deus dele, é claro...), seriam mandados para o inferno, por toda a eternidade. Pelo medo os clérigos católicos e protestantes conseguiam a submissão dos fracos.

Depois, por razões que desconheço, o meu terror pela morte desapareceu. O “lado de lá” já não me assusta. Pois só há duas possibilidades. Primeira: o “lado de lá” não existe. Se não existe, serei devolvido ao lugar onde estive desde o big-bang, treze bilhões de anos atrás. E não tenho a menor memória ruim desses treze bilhões de anos. Pode até ser que as mãos dos deuses que tecem o avesso me façam nascer de novo. Se isso acontecer será ótimo porque gosto muito de viver. Segunda: o “lado de lá” existe. Se existe, estou tranqüilo. Como entendem os poetas, Deus é amor, e sendo amor não posso imaginar que nada de mau esteja à minha espera.

Muito do terror da morte resulta das coisas que nos ensinaram nas igrejas, coisas que nossas mães nos ensinaram. São sempre elas, as mães, as portadoras da religiosidade, não sei bem porque. Talvez porque, tendo Deus ao seu lado, elas consigam que seus filhos as obedeçam. Como se sabe, Deus castiga as crianças que desobedecem as suas mães. Por amor às nossas mães, continuamos a acreditar...

Mas as coisas que as religiões ensinam são invenções dos homens. Um Deus de amor iria estragar o seu universo com uma câmara de tortura chamada inferno? Pelo que sei Deus é jardineiro e se ocupa com a beleza. Como disse Bachelard, os tipos que inventaram o inferno tinham muitas vinganças a realizar. Mas o amor não se vinga. Pelo menos foi isso que aprendi de Jesus.

E o fato é que ninguém acredita. Se as pessoas religiosas acreditassem que o céu é tão bom assim elas não iriam tanto ao médico e não se esforçariam tanto para continuar vivendo. Tratariam era de morrer logo para apressar sua viagem para a colônia de férias permanente. O que elas desejam, mesmo, é continuar nesse mundo tão bonito, tão bom.

O que tenho não é medo. É uma tristeza. É-me insuportável a idéia de ser expulso de campo...
Assim, não tenho palavras de consolo. “Com que tristeza avisto o horizonte aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto!” Era o sentimento da Cecília Meireles. Os poetas dizem a verdade. E por falar em poetas, leia o poema do Alberto Caeiro que começa assim: “Num meio dia de fim de primavera...” É lindo. Trás paz à minha alma. Trará paz à sua também. E gosto de rezar essa linda oração. E nem é preciso acreditar em Deus. Basta se alimentar das palavras. Como diz o evangelho, “a palavra é Deus”.

PELOS QUE VÃO MORRER

“Ó Tu, Senhor da Eternidade, nós que estamos condenados a morrer elevamos nossas almas a Ti à procura de forças, porque a Morte passou por nós na multidão dos homens e nos tocou, e sabemos que em alguma curva do nosso caminho ela estará nos esperando para nos pegar pela mão e nos levar... não sabemos para onde.

Nós te louvamos porque, para nós, ela não é mais uma inimiga, e sim um grande anjo teu, nosso amigo, o único a poder abrir, para alguns de nós, a prisão da dor e do sofrimento e nos levar para os espaços imensos de uma vida nova.

Mas nós somos como crianças, com medo do escuro e do desconhecido, e tememos deixar esta vida que é tão boa, e os nossos amados, que nos são tão queridos.

Dá-nos a graça de ter um coração valente para que possamos caminhar por esta estrada com a cabeça levantada e com um sorriso no rosto. Que possamos trabalhar alegremente até o fim, e amar os nossos queridos com ternura ainda maior, porque os dias do amor são curtos. Sobre ti lançamos a carga mais pesada que paralisa nossa alma: o medo que temos de deixar aqueles que amamos, os quais teremos de deixar desabrigados num mundo egoísta. Nós confiamos em ti porque durante toda a nossa vida foste o nosso apoio.

Ó tu, pai dos órfãos, protege os nossos pequeninos. E, antes de partirmos, pedimos-te que chegue logo o dia no qual os que estão morrendo morrerão sem medo, porque os fracos já não mais serão as vítimas dos fortes, e a grande família que é a nação a todo abraçará com sua força e o seu cuidado.

Nós te agradecemos porque experimentamos o gosto bom da vida. Somos-te gratos por cada hora de nossas vidas, por tudo o que nos coube das alegrias e lutas dos nossos irmãos, pela sabedoria que ganhamos e será sempre nossa.

Se tivermos de partir logo, sabemos que inda assim foi através de ti que vivemos e a nossa vida continuará a fluir através da raça humana. Pela tua graça nós também ajudamos a moldar o futuro e a trazer dias melhores.

Se nos sentirmos abatidos com a solidão, sustenta-nos com a tua companhia. Quando todas as vozes do amor ficarem distantes e se forem, teus braços eternos ainda estarão conosco. Tu és o pai do nosso espírito. De ti viemos e para ti iremos. Regosijamo-nos porque, nas horas das nossas visões mais puras, quando o pulsar da eternidade é sentido forte dentro de nós, sabemos que nenhuma agonia da mortalidade poderá atingir a nossa alma inconquistável e, para aqueles que em ti habitam, a morte é apenas a passagem para a vida eterna. Nas tuas mãos entregamos o nosso espírito.”
( Walter Rauschenbusch, Orações por um mundo melhor, PAULUS )

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